O mundinho quase não cabia em seu pequeno tênis Montreal. Quando criança, achava que Deus era igual ao avô, de cabelo branco e barba, que Deus usava túnica, ajudava a fazer o gol, trazer presentes e abençoar comida. Fingia o sono até o pai silenciar a casa. Com os pés no chão, desaparecia com cuidado de si, mas deixava os dentes rangendo e uma voz de tom grave e bem baixinha que já existia em sua infância.
O pai e a mãe viviam achando que esse menino falava dormindo. A época era muito boa, cheia de descoberta, e em cada passo era semeado pensamentos, sentimentos e sofrimentos. Mesmo que não existisse a paciência de esperar desabrochar: às vezes ele inundava o pequeno quarto em lágrimas tentando regar bons pensamentos e uma atenção que poderia receber em algum momento de sua vida. Sua paixão era olhar o céu à noite, e durante a noite, existia o futebol dos adultos que só acontecia nesse horário lindo e abençoado pela lua e pelas estrelas.
Durante bastante tempo até ele mesmo acreditou no futebol dos adultos como motivação. Acreditou na escuridão do céu, nas estrelas, na lua. Quando finalmente ele descobriu a filha do Advogado-Cabelo prateado, nesse exato momento ele não teve dúvidas. Os dentes não mais continuavam desgastando o sono do seu pai e da sua mãe. Foi então que o beijo pintou o rosto dela: no mesmo momento que o Advogado-Cabelo prateado assistia e pressentia o gol que a seleção feminina de futebol sofreria em instantes, como se a intuição dissesse que sua filha acabara de ser menos sua filha e mais namorada do rapaz.
O Advogado-Cabelo prateado sabia que o amor dela nunca mudaria por ele, era só o sentimento que dizia “minha filha cresceu”. O segredo, as viagens juntos, os encontros próximos ao mapa dos adimplentes do condomínio dela, os passeios de ônibus que eram sigilosos, os estudos que eram pretextos para que eles pudessem se encontrar, fotos escondidas em sites de relacionamentos, e mensagens bloqueadas, vestígios sendo apagados, menos os rostos sorridentes, e desculpas esfarrapadas para a felicidade. É a faculdade pai, está tão bom lá. E a mãe dela ao lado dele fazendo uma expressão de reprovação. O olhar de chateação do Advogado-Cabelo prateado proibia qualquer insinuação da esposa, mas mesmo assim ele ficava calado com o olhar dela.
Então do celular construíram um barquinho voador e navegavam todas as noites, às vezes o passeio era para que fugissem um pouco da realidade e isso acalmava um pouco a menina, outras vezes pescavam estrelas e sonhos. E o amor em pequeninos textos escorrendo pelo blog e deslizando no ouvido dela. E quando os pensamentos ultrapassavam todas as palavras, ele jamais perdia o raciocínio, sempre pedia carona.
Às vezes a mulher do Advogado-Cabelo prateado furava o barquinho voador e o fazia de réu. Ela não queria perder a filha para a felicidade e repetia uma frase de Charles Baudelaire que dizia:
"O amor é um crime que não se pode realizar sem cúmplice”.
Como se ele fosse o forasteiro malvado e quisesse fazê-la sofrer.
O que ela não sabia era que esperar ou admitir esse amor é sempre tão bom quanto cometê-lo.